terça-feira, 16 de junho de 2009

24 Horas e os seus dilemas

Por Gutierres Siqueira

Os produtores da famosa série 24 Horas inovaram. Antes da sétima temporada lançaram um filme para a TV intitulado em português como 24 Horas: A Redenção. O longa-metragem serve, portanto, como uma introdução da nova temporada. Então, para quem está assistindo a temporada atual, é imprescindível que antes veja o filme.

24 Horas: A Redenção foi criado diretor Jon Cassar para que o público não se desacostumasse com as histórias de Bauer, já que esse novo ano veio com atrasos por causa da grave dos roteiristas. O filme acontece em tempo real em meio a muita ação entre 15 às 17 horas.

Em Sagala, um país fictício do continente africano, Jack Bauer (Kiefer Sutherland) refugia-se em uma pequena comunidade de crianças órfãs que são cuidadas pelo missionário estadunidense Carl Benton (Robert Carlyle). Bauer busca sua redenção após as suas conturbadas relações amorosas e familiares, além da fuga de acusações de tortura e desobediência presidencial.


Mesmo escondido nesse acampamento missionário, Bauer é intimado pelo oficial da embaixada norte-americana em Sangala, Frank Tramell (Gil Bellows) para comparecer aos Estados Unidos e responder as acusações. Bauer nega-se a voltar aos Estados Unidos e prefere fugir para outro lugar.

No mesmo momento acontece nos Estados Unidos a posse da presidente Allison Taylor (Cherry Jones). Algumas horas antes da cerimônia oficial Allison Taylor é informada pelo ainda presidente Noah Daniels (Powers Boothe) que não fará uma intervenção militar em Sangala, apesar do apelo do primeiro-ministro sangalês Ule Matobo (Isaach De Bankole), que está preocupado com o iminente golpe de estado promovido pelo general sanguinário Benjamim Juma (Tony Todd).

Roger Taylor (Eric Lively) filho da presidente possui um amigo problemático, chamado Chris Whitley (Kris Lemche), que começa a desvendar um esquema fraudulento envolvendo nomes poderosos da cúpula militar privada dos Estados Unidos, como Jonas Hodges (Jon Voight), um poderoso empresário da companhia militar privada Starkwood.

Hodges promove um total apóio tático para que o General Benjamin Juma efetue um golpe militar em Sangala. Juma utiliza crianças com parte do seu exército e os seus militares invadem a propriedade do missionário Benton para capturar as crianças daquele local. Porém, lá ainda estava Jack Bauer que ajuda essas crianças a caminharem até a embaixada norte-americana.

“Contra o imperialismo americano”


Os militantes do general Juma convencem as crianças que elas estarão lutando contra as “baratas” dos imperialistas americanos para a real libertação de Sangala. Essa abordagem mostra uma realidade de muitos ditadores em países pobres, que exploram suas populações usando a justificativa de combater um império (ou inimigo externo). Essa abordagem lembra certamente o presidente do Zimbábue, o ditador Robert Mugabe e outros líderes que se apóiam numa ideia maniqueísta para justificar suas atrocidades.

Assim como no filme Diamante de Sangue, A Redenção explora o sério problema humanístico do uso de crianças como soldados dessas guerras civis. Algumas instituições de direitos humanos denunciam a existência de 300 mil de crianças-soldados, principalmente no continente africano e na faixa de Gaza, que são normalmente exploradas por ditadores ou grupos terroristas, como o Hamas. Mas próximo da realidade brasileira, documentários como Falcão-Meninos do Tráfico expõem a cruel demanda do tráfico por crianças e adolescentes nos morros cariocas.

Sétima temporada em Washington, D. C.


O cenário já não é mais Los Angeles, mas sim a capital federal Washington. Jack Bauer está de volta, agora no senado americano sendo julgado pelas acusações de tortura. A CTU (Counter Terrorist Unit, ou Unidade Contra-Terrorismo) já não existe. Apesar de tudo diferente, os Estados Unidos continuam debaixo de uma ameaça terrorista. Porém, a ameaça é interna, do ressuscitado ex-agente da CTU, Tony Almeida (Carlos Bernard).

Também, na sétima temporada o braço direito de Bauer não é Chloe O'Brian (Mary Lynn Rajskub) ou Bill Buchanan (James Morrison), mas sim a agente federal Renne Walker (Annie Wersching). Walker sofrerá bastante com conflitos profissionais ao acompanhar Bauer em sua jornada contra o terrorismo iminente e a problemática da tortura.

Agora, quem cuida dessas ameaças é o FBI, que contará com Bauer para ajudar na captura dos terroristas. Nessa nova fase o terrorismo passa tanto pelas mãos de Tony Almeida, como do general Benjamim Juma e o seu companheiro general Iké Dubaku (Hakeem Kae-Kazim). Além dos terroristas africanos, todo o apóio parte de agentes corruptos do governo americano, do FBI e das empresas militares privadas, entre eles o poderoso Jonas Hodges.

O dilema da tortura

As torturas, como em todas as temporadas causam um mal estar na vida de Jack Bauer e nos seus relacionamentos profissionais, mas nesse sétimo dia, Bauer continua torturando, com suas alegações dos fins justificando os meios. Ao contrário da leniente CTU, Bauer encontra forte oposição do FBI quanto à tortura, especialmente do agente especial Larry Moss (Jeffrey Nordling). No decorrer da temporada, Bauer vai “convencendo” que essas “técnicas” são métodos eficazes para aqueles que o acompanham, especialmente Renne Walker. A grande pergunta é se Bauer fará escola no FBI?

O Bauer da era George W. Bush é o mesmo Bauer da era Barack Obama. Quem acha que a série seria captada pelo “politicamente correto” já se decepcionou nos primeiros episódios. O instinto desse ex-agente da CTU está na captura e destruição de qualquer terrorista. Aliás, somente alguém baseado em uma visão irrealista de política internacional, achará que as necessidades belicistas dos EUA mudarão simplesmente pela boa vontade do novo presidente. Acima dos sonhos encarnados no Obama, há o pragmatismo desse líder mediante dos desafios enfrentados no planeta.

Tortura serve para alguma coisa?

Jamais uma resposta afirmativa será dada para tal pergunta. Agora, algumas questões podem ser levantadas para esse debate. Segundo relatórios da CIA o terrorista da Al-Quaeda, Khalid Shaikh Mohammed, capturado pelo exército americano no início de 2008, sabia de planos para um novo ataque ao território dos EUA. Khalid sofre na base de Guantánamo a técnica de tortura chamada de waterboarding (simulação de afogamento) por 183 vezes, e revelou informações suficientes para o desmonte de uma célula da Jemmah Islamiyah, com 17 membros. Certamente essa confissão sob tortura salvou milhares de americanos. Mas é ético? Os fins justificam os meios?

Bauer lida com isso. Os idealizadores da lei criaram tais preceitos para o bem da sociedade, e a lei está acima de um ônibus com quinze passageiros na mão de terroristas. Bauer encara que a tortura é um erro que chama outro, mas uma vez efetuado pode salvas vidas.

O produtor da série 24 Horas, Joel Surnow, em entrevista para a jornalista Jane Mayer da revista The New Yorker, declarou: "Recentemente, estiveram aqui vários especialistas em tortura, e eles falaram 'Vocês não têm idéia do número de pessoas que é influenciado por isso. Tomem cuidado'. Eles dizem que a tortura não funciona. Mas eu não acredito. Não acho que seja honesto dizer que, se uma pessoa amada estivesse presa, e você tivesse cinco minutos para salvá-la, você não usaria tortura. O que você faria? Se alguém tivesse raptado uma das minhas filhas, ou a minha mulher, eu iria querer ter a oportunidade. Não existe nada - nada - que eu não fosse capaz de fazer”.


Bauer lida com isso. Os idealizadores da lei criaram tais preceitos para o bem da sociedade, e a lei está acima de um ônibus com quinze passageiros na mão de terroristas. Bauer compreende que a tortura é um erro que chama outros erros.

OBS: Esse artigo foi publicado originalmente como o título “24 Horas longe do fim” na Revista IKONE, uma publicação acadêmica para as aulas do 5° semestre de jornalismo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Textos Comentados: A obamanização do mundo

Por João Pereira Coutinho*

Estou cansado da obamanização do mundo. Inventei agora a palavra. Vocês sabem o que ela significa: a obamanização consiste em substituir a realidade pela fantasia, esperando que nos quatro cantos do globo surja sempre um candidato capaz de imitar a retórica bondosa e evangelista do original Barack.

Aconteceu agora no Irã. Li os jornais disponíveis. Acompanhei as reportagens televisivas. O tom era semelhante: pela primeira vez desde 1979, altura em que Khomeini deixou o seu exílio dourado em Paris para regressar a Teerã, os iranianos iriam escolher novo presidente. Pior: iriam escolher um "moderado" (Mousavi) por oposição a essa grotesca criatura chamada Ahmadinejad.

A fantasia esquecia dois pormenores básicos, quase dolorosos. Primeiro: o Irã não é uma democracia. O Irã é uma teocracia, o que significa que as decisões (iniciais e finais) pertencem ao Líder Supremo, Khamenei.

É o Líder Supremo quem escolhe os candidatos presidenciais. Em todas as eleições, aparecem centenas ao cargo. Esse ano, foram 485 candidaturas. Quatro foram selecionadas, depois de verificação apertada, ou seja, depois de se verificarem os créditos revolucionários dos quatro candidatos, rigorosamente do sexo masculino e rigorosamente muçulmanos xiitas. Mas a influência do Líder Supremo não termina aqui. O Líder Supremo, independentemente do resultado da votação, escolhe o presidente do Irã. Os iranianos que foram às urnas são apenas figurantes de um teatrinho sórdido.

Mas há mais. Nos últimos dias, surgiu igualmente a fantasia de que Ahmadinejad poderia ser derrotado por um "moderado". E quem é o moderado? Precisamente: Mir-Hossein Mousavi, um antigo primeiro-ministro de Kohmeini, responsável pela execução maciça de opositores políticos na década de 80 (20 mil? 30 mil?). Alguns jornalistas, sem um pingo de vergonha na cara, chegaram mesmo a acrescentar que Mousavi iria inaugurar um novo período de relações amigáveis com o Ocidente e, pasmem, Israel. Para os relapsos, relembro que Mousavi esteve envolvido no atentado terrorista ao centro cultural judaico de Buenos Aires. Morreram 85 pessoas.

E agora? Agora, coisa nenhuma. A vitória de Ahmadinejad, seguramente forjada, cumpriu na perfeição o roteiro pré-definido pela teocracia iraniana. O que significa que, depois dos Guardas Revolucionários fazerem o seu trabalho, prendendo ou espancando os manifestantes, o Irã continuará o seu glorioso caminho rumo à pobreza, à opressão das suas minorias e, claro, à bomba nuclear, para uso cirúrgico contra Israel. A obamanização do mundo é uma idéia simpática. As idéias simpáticas, pelos vistos, não chegam a Teerã.

* João Pereira Coutinho, 32, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online, e às terças-feiras para o caderno Ilustrada.

Comentário

Por Gutierres Siqueira

Enfim, João Pereira Coutinho mostra com maestria como o mundo vive uma fase de messianismo político. Os messiânicos acreditam que elegendo os “homens certos”, o mundo será um lugar melhor. É temerário como o ser humano tem uma facilidade incrível em depositar esperanças em estadistas. Daí nasce ditadores que se portam como salvadores. A saudável desconfiança nos governantes morre a cada dia, principalmente depois da vitória do messias Obama.

No Brasil assistimos o slogan “a esperança venceu o medo”. Nos Estados Unidos contemplamos o “sim, nós podemos”. Nada mais infantil, do que a credulidade em homens que detêm o poder de grandes nações. A esperança é boa, mas a ingenuidade é mortífera.

Nesses últimos dias, a imprensa “oba” “oba” louvou o “moderado” Mir-Hossein Mousavi. Aliás, existe moderação é uma teocracia (lê-se clerocracia) islâmica? Difícil. Hoje o governo americano fala até em negociação com um “Talibã moderado”. O que é isso? Ah sim, talvez o “talibã tradicional” mata uma mulher “transgressora” com pedradas ao vivo em estádios, e o “talibã moderado” mata com pedradas, mas sem espetáculos. Ridículo. Não existe moderação com mulçumanos fanáticos que cresceram aprendendo que louvam a Alá quando matam os infiéis, ou seja, os ocidentais.

Portanto, Mousavi e Ahmadinejad são nada mais do que fantoches na teocracia iraniana. Farinhas do mesmo saco!

domingo, 14 de junho de 2009

Reportagem: Vendendo o seu produto

Por Gutierres Siqueira com Fernanda Silvestre (do Blog Jornalismo Literal)

Personagens diferentes no ambiente massificado por pessoas “iguais”

A busca por uma personagem pode ser trabalho árduo a um jornalista. Ainda mais se essa personagem possui uma vida nômade e ligeiramente excêntrica. Ao passar diariamente pelo Conjunto Nacional, podemos encontrar uma figura no mínimo curiosa. Imagine a cena: um Hare Krishina meditando no meio do Conjunto Nacional, em plena Avenida Paulista, a maior avenida do país e também a mais agitada e caótica.

Indiferente à agitação do trabalhador neurótico paulistano, o pequeno Hare Krishina, todas as manhãs, com sua já surrada túnica laranja e pés descalços adentra o Conjunto Nacional e senta-se em um banco próximo à escada rolante que dá acesso ao Cine Bombril. Respira fundo, cruza as pernas em formato de lótus, fecha os olhos e começa a meditar. Lá fica por horas. Quem passa por ele olha com um ar curioso, espantado, muitas vezes achando-o louco.


Sem se importar com a cidade que gira lá fora, nossa personagem flutua em seu nirvana particular. Careca, com um rabicó na nuca todo trançado e aparentemente com idade aproximada de 40 anos, o seguidor do deus indiano que dá nome à religião, depois de muito meditar, abre os olhos, tira alguns livros de uma bolsa-sacola e sai do Conjunto, posicionando-se na esquina da Paulista com a Hadock Lobo, a poucos metros do metrô Consolação.

Às cinco horas da tarde o movimento da Paulista é intenso. Executivos, oficce boys, secretárias, diretores e a mais variada fauna de trabalhadores urbanos estão no fim do expediente e começam a se aglomerar na rua, lutando por um espaço na calçada. E lá está o Hare Krishina, com sua inseparável sacola de livros. Começa a abordar os apressados passantes da Paulista. Quer ler os ensinamentos de sua religião para os “homens sem fé”. Quase ninguém lhe dá atenção. Acham que ele quer vender os livros. Um rapaz com porte de modelo para. Ligeiramente e com os olhos arregalados, ele folheia um dos livros com uma rapidez absurda, a procura de um trecho que caiba perfeitamente para aquela pessoa e aquele momento. Começa a ler e fazer movimentos com a mão direita, como se fosse um profeta. A mão esquerda segura o livro. O rapaz presta atenção na leitura, parece interessado. Depois de cinco minutos, o Hare Krishina faz uma reverência a seu saudoso ouvinte que agradece e segue seu caminho. O singular homem franzino se vira e retoma as abordagens.

A história desse homem, caricata figura do Conjunto Nacional merece ser contada. Traçamos um roteiro para encontrá-lo, observá-lo para termos maior riqueza de detalhes e tentarmos uma entrevista com ele e assim conhecermos sua vida, suas crenças e seus caminhos de andarilho.

Começamos a busca em uma sexta-feira. Nenhum sinal do Hare Krishina durante todo o dia. Segunda-Feira marcamos logo cedo para uma nova tentativa. Mais uma vez, nosso personagem estava ausente. Esperamos por um longo tempo. Andamos pelo quarteirão, na esperança de vê-lo lendo suas profecias a algum pedestre. Sem sucesso, por volta das onze da manhã, fomos até a Livraria Cultura, maior atração do Conjunto Nacional. Analisando a estante de livros sobre comunicação, divagávamos sobre ideologias e o futuro da imprensa. Achamos perdido em meio a uma infinidade de livros, um pequeno ensaio sobre Luiz Carlos Prestes, escrito por sua filha Anita Leocádia. Leituras interessantes foram montando nossa “cesta de compras”. No andar superior da livraria, paramos na sessão de esportes. Como poderíamos imaginar que existia um livro intitulado “Como escolher os melhores peixes para o seu aquário”. As surpresas não paravam de aparecer. Em maio a mais uma discussão entre direita e esquerda, começamos a falar sobre o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Divagando sobre sua importância, somos então abordados por um senhor, que nos pergunta se somos alunos de história. Respondendo que não, ele revela que foi aluno de Sérgio Buarque de Holanda e nos conta sobre a importância histórica da obra de seu professor para o Brasil. Voltando-se novamente para a prateleira de livros de Sociologia, o homem começa a folhear um espesso livro. Concluímos que em São Paulo podemos encontrar grandes personagens aonde quer que possamos estar.


Sem notícias do intrigante Hare Krishina, seguimos para o bairro da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, onde mais uma figura singular da cidade trabalha. Chegando por volta das 13 horas, nos deparamos com seu espaço de trabalho (o topo da escadaria do metrô), vazio. Estávamos definitivamente sendo abandonados por nossas personagens.

O Hare Krishina realmente sumiu. Por mais dois dias voltamos ao local e nada desse personagem, não sabemos o seu paradeiro, pois por toda a Avenida Paulista não há um sinal de suas meditações. Porém, a vendedora de chocolate não demorou em voltar para o seu lugar. Depois de dois dias pudemos conversar com a camelô mais famosa da estação, e logo descobrimos o motivo de sua repentina sumida: a fiscalização mais intensa da guarda contratada pelo metrô paulista.

Vida de vendedor ambulante

Todos os dias milhares de pessoas passam apressadas pelas estações de metrô na cidade de São Paulo. Entre essas pessoas estão muitos que nem percebem o contingente de vendedores ambulantes, que fazem sua vida por meio de pequenas vendas, seja desde um churrasco até milho cozido.

Eles disputam espaço vendendo os seus produtos em pequenas barracas improvisadas, porém de fácil manejo para fugir dos guardas que fazem a segurança do metrô. Cada um possui o seu canto que é delimitado de forma invisível. Entre alguns vendedores ambulantes do metrô Vila Mariana há uma que se destaca por seu famoso bordão marqueteiro: - “Leve o chocolate”!


Gonçala Ferreira da Silva, maranhense, natural de uma pequena cidade chamada de Pio XII, veio para São Paulo há 16 anos. Quanto à idade ela diz que tem 4.3, ou seja, um eufemismo para falar sobre os anos de vida, mas Gonçala diz não se importar em revelar quantos aniversários já fez na vida. Gonçala, portanto, é mais uma migrante entre milhares que buscam na capital paulista uma vida melhor. Mas, segundo dados recentes, esse fluxo migratório diminui a cada ano, pois hoje a atração para os trabalhadores brasileiros são as cidades de médio porte, que recebem moradores de pequenos municípios e até das metrópoles.

Gonçala está todos os dias, faça chuva ou faça sol. Quando o frio aperta, não deixa de usar a sua toca tipicamente russa. Costuma vender sozinha, mas às vezes está conversando com uma de suas colegas camelôs. Normalmente de braços cruzados olha para o horizonte, como se estivesse desatenta. Mas não, sempre muito esperta, atende rapidamente os seus clientes.

Diante dos perigos da rua, ela diz que nunca foi assaltada, mas já presenciou muitos assaltos na porta do metrô. Muitas vezes ela é abordada por pessoas pedindo dinheiro ou simplesmente com a história que “perderam” suas passagens e que precisam voltar para suas casas. Gonçala, experiente com as ruas, não atende esses pedidos.

Mãe solteira e com poucos parentes e amigos na Grande São Paulo, Gonçala trabalhou pouco tempo com carteira assinada, efetuando serviços como emprega doméstica. Depois, já na Vila Mariana, passou a trabalhar nas ruas vendendo os cigarros paraguaios, que são facilmente adquiridos nos atacados no centro da cidade. Nesse mercado, passou somente dois anos e então resolveu vender chocolates.

Gonçala tem um filho de 13 anos. Esse pré-adolescente ajuda sua mãe desde os quatro anos. Estudante da rede pública, não fica todo o dia com a mãe, somente quando possível. Os dois moram em Heliópolis, a maior favela da capital paulista, que aos poucos recebe uma ampla estruturação urbanística. Entre o trabalho e a sua casa, ela gasta um pouco mais de trinta minutos. Gonçala trabalha todos os dias das 17h até meia-noite. Porém, nos últimos dias tem saído mais cedo, por volta das 22h30, devido à intensa fiscalização no final da noite.

Esta forçada saída de duas horas mais cedo tem preocupado Gonçala. Um horário muito bom de vendas, que é a vinda dos estudantes de suas universidades, tem sido abortado pela fiscalização. Para complementar a renda, Gonçala trabalha ainda como vendedora dos produtos Natura e Avon, além do trabalho de manicure aos finais de semana.

Gonçala, ainda conversando sobre a vida de camelô, lembra que o tipo de venda mais arriscada nas ruas de São Paulo são CD`s e DVD`s piratas, até mais do que cigarros e os seus chocolates. A preocupação com os fiscais é constante. No início da conversa ela expressou até mesmo uma desconfiança e logo perguntou se não éramos uma espécie diferenciada de fiscais, ou mais conhecidos popularmente como “Rapas”. A preocupação não é à toa, pois a “Rapa” já tomou suas mercadorias por três vezes, ou seja, prejuízo total.

Marketing popular

Nesses últimos dez anos, a ambulante está praticamente todos os dias na porta da estação gritando o famoso “Leve o chocolate”. Gonçala, observando os camelôs da Rua 25 de março percebeu a disputa interessante entre cada um, apresentando por meio dos gritos os seus produtos. Resolveu imitá-los. Gonçala não lembra o momento exato que começou a usar o seu bordão, mas comemora o fato e diz que suas vendas aumentam, pois a sua frase desperta os passageiros desatentos, que logo percebem o seu chocolate.

A voz de Gonçala é inconfundível, assim como sua frase. Mas a sua estratégia de marketing não é uma unanimidade. Gonçala diz que se diverte, mas vê muitos imitando sua voz, principalmente grupos de garotos e garotas que saem das várias escolas presente na região. Além da imitação, ela relata que alguns acham simplesmente engraçado a sua fala e outros até se irritam. Gonçala diz que não se incomoda com as imitações em tom jocoso.

Ela revela que um jovem universitário já gravou sua voz com um MP3 e uma câmera filmadora. Esse jovem disse que ia colocar o material na internet. Após essa interessante descoberta, vimos que não somos os únicos despertados pelo “leve o chocolate”.

Ao final da conversa, que fluiu com mais facilidade do que o esperado, Gonçala desejou sorte e disse após a conclusão do trabalho, quer receber o endereço da web onde o texto será publicado. Ela quer acessar com o seu filho. Prometemos informá-la.

Observando esses personagens paulistanos como o Hare Krishina, o aluno do Sérgio Buarque de Holanda e a Gonçala Ferreira, vemos como todos procuram vender os seus produtos e as suas abordagens criativas. Um vende a sua fé, o outro a sua intelectualidade e a outra alguns chocolates. São Paulo é um lugar para vendedores.

sábado, 13 de junho de 2009

A mania de favelização dos filmes brasileiros

Por Gutierres Siqueira

Carandiru, Central do Brasil, Cidade dos Homens, Era Uma Vez, Linha de Passe, Meu Nome Não É Johnny, Tropa de Elite, Última Parada-174 e tantos outros filmes brasileiros de sucesso focam sua temática nas favelas, presídios e pobreza. Sucessos em bilheterias, tais longas-metragens mostram mortes explícitas, sexualidade não erótica, pobreza do país e as mazelas da sociedade brasileira, assim como traços do caráter nacional.

Os cineastas brasileiros parecem que sofrem da síndrome Glauber Rocha, pois estão incumbidos de uma missão divina em promover a justiça social por meio dos filmes e produções na TV. Talvez, pessoas como Regina Casé façam escola entre os produtores de filmes. Baseados na tríade “menos custos, mais realidade e mais conteúdo”, esses cineastas buscam apresentar um face não agradável da sociedade brasileira, para comover a opinião pública e talvez mudar essa realidade.

Algumas perguntas precisam feitas sobre o cinema “favelizado” no Brasil. Primeiro, se as pessoas vão ao cinema para entretenimento ou reflexão crítica da sociedade sob um viés normalmente ideológico. Segundo, se realmente nesses longas-metragens não há na verdade uma exaltação da miséria, como um estilo de vida cultural que deveria ser apreciado de forma romântica. Terceiro, se os filmes não acabam repassando uma imagem bem negativa do Brasil para outras nações. Quarto, se os filmes não acabam alimentando um imaginário de lutas de classes de um víeis marxista simplista etc.

Muitos pensam que mostrando favelas em filmes talvez contribuam para a melhoria do país. Ledo engano. O excessivo consumo do dito capitalistas selvagens, que enchem as filas das salas de cinema para assistir traficantes matando criancinhas ou moradores de favelas sendo mortos por policiais corruptos, simplesmente não fazem nenhuma justiça, mas podem inclusive trazer um efeito oposto: a barbárie sendo vista como civilização.

Os cineastas antropólogos da escola de Rousseau acreditam piamente que o homem nasce bom, mas a sociedade marginalizadora e elitista o corrompe da pior forma possível. Assim, tentam inconscientemente justificar os erros cometidos por muitos bandidos, como no filme Última Parada- 174. Ou mostram os meninos pobres como potenciais bandidos simplesmente por não terem acesso ao bom ensino das escolas particulares. Será que essas pessoas não possuem liberdade de escolha e não entendem a diferença entre a dignidade na pobreza e a bandidagem enganosa do dinheiro fácil? Parecem que os personagens pobres são tábuas rasas moldados pela sociedade que não dá oportunidades.

(Obs: Texto completo com o título "Todos querem ser um Glauber Rocha" foi publicado na Revista IKONE, uma produção acadêmica para aulas do 5º semestre de jornalismo)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Resenha: A glória e a desgraça de Wilson Simonal

Por Gutierres Siqueira

Entre as décadas de 1960 e 1970 somente havia um cantor em concorrência direta com Roberto Carlos, e o seu nome era Wilson Simonal, o carismático e querido ídolo pop. Wilson Simonal de Castro (1938-2000) nasceu em uma família bem pobre, filho de doméstica e ainda negro, portanto uma raridade na classe artística brasileira daquela época. Fez muito sucesso, sendo que, participou inclusive da delegação brasileira de futebol na Copa do México.

Simonal mistura um ritmo de sucesso: Letras ousadas, roupas coloridas, batidas desconcertantes. Ele dividiu o palco com pessoas como Marília Pera e cantou o épico “The shadows of your smile” como a famosa Sara Vaughan.Era alguém pronto para um estrelado permanente, até que caiu na desgraça.

No auge da ditadura militar, Simonal foi acusado de alcagueta do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Entre passou a ser visto como uma traíra meio da classe artística. Sob esse estigma, Simonal nunca foi perdoado pelos artistas, que passaram a vê-lo como uma persona no grata. Simonal sempre negou e o episódio ainda não está totalmente esclarecido, porém tal fato acabou com a carreira desse famoso ídolo de décadas passadas, que morreu na pobreza.

Simonal perdeu espaço na televisão, no rádio e nos jornais. O famoso periódico esquerdista Pasquim simplesmente tornou-se um panfleto contra esse ex-ídolo. Simonal que fora apresentador de TV, no final de sua vida se escondia entre a platéia dos shows que ai ver. Esses shows eram dos seus filhos Max de Castro e Simoninha. Simonal não queira prejudicar a imagem deles.

Mário Prata, em uma crônica algumas anos antes de Simonal morrer, conclamava a todos os brasileiros a uma anistia: “Num momento que o Brasil oferece exemplo de democracia e dignidade interna e externamente, é hora de se anistiar o Simonal. Que ele volte com sua voz gostosa e seu jeito de malandro aos palcos do Brasil. Deixemos que ele entre novamente em nossas casas, pela porta da frente. Ou pela gaveta de um CD”.


Essa história é recontada com riqueza de detalhes no documentário Simonal- Ninguém Sabe o Duro que Dei, dirigido por Cláudio Manoel, Mikael Langer e Calvito Leal.


OBS: Esse artigo foi publicado originalmente na Revista IKONE, uma publicação acadêmica para as aulas do 5° semestre de jornalismo.