domingo, 14 de junho de 2009

Reportagem: Vendendo o seu produto

Por Gutierres Siqueira com Fernanda Silvestre (do Blog Jornalismo Literal)

Personagens diferentes no ambiente massificado por pessoas “iguais”

A busca por uma personagem pode ser trabalho árduo a um jornalista. Ainda mais se essa personagem possui uma vida nômade e ligeiramente excêntrica. Ao passar diariamente pelo Conjunto Nacional, podemos encontrar uma figura no mínimo curiosa. Imagine a cena: um Hare Krishina meditando no meio do Conjunto Nacional, em plena Avenida Paulista, a maior avenida do país e também a mais agitada e caótica.

Indiferente à agitação do trabalhador neurótico paulistano, o pequeno Hare Krishina, todas as manhãs, com sua já surrada túnica laranja e pés descalços adentra o Conjunto Nacional e senta-se em um banco próximo à escada rolante que dá acesso ao Cine Bombril. Respira fundo, cruza as pernas em formato de lótus, fecha os olhos e começa a meditar. Lá fica por horas. Quem passa por ele olha com um ar curioso, espantado, muitas vezes achando-o louco.


Sem se importar com a cidade que gira lá fora, nossa personagem flutua em seu nirvana particular. Careca, com um rabicó na nuca todo trançado e aparentemente com idade aproximada de 40 anos, o seguidor do deus indiano que dá nome à religião, depois de muito meditar, abre os olhos, tira alguns livros de uma bolsa-sacola e sai do Conjunto, posicionando-se na esquina da Paulista com a Hadock Lobo, a poucos metros do metrô Consolação.

Às cinco horas da tarde o movimento da Paulista é intenso. Executivos, oficce boys, secretárias, diretores e a mais variada fauna de trabalhadores urbanos estão no fim do expediente e começam a se aglomerar na rua, lutando por um espaço na calçada. E lá está o Hare Krishina, com sua inseparável sacola de livros. Começa a abordar os apressados passantes da Paulista. Quer ler os ensinamentos de sua religião para os “homens sem fé”. Quase ninguém lhe dá atenção. Acham que ele quer vender os livros. Um rapaz com porte de modelo para. Ligeiramente e com os olhos arregalados, ele folheia um dos livros com uma rapidez absurda, a procura de um trecho que caiba perfeitamente para aquela pessoa e aquele momento. Começa a ler e fazer movimentos com a mão direita, como se fosse um profeta. A mão esquerda segura o livro. O rapaz presta atenção na leitura, parece interessado. Depois de cinco minutos, o Hare Krishina faz uma reverência a seu saudoso ouvinte que agradece e segue seu caminho. O singular homem franzino se vira e retoma as abordagens.

A história desse homem, caricata figura do Conjunto Nacional merece ser contada. Traçamos um roteiro para encontrá-lo, observá-lo para termos maior riqueza de detalhes e tentarmos uma entrevista com ele e assim conhecermos sua vida, suas crenças e seus caminhos de andarilho.

Começamos a busca em uma sexta-feira. Nenhum sinal do Hare Krishina durante todo o dia. Segunda-Feira marcamos logo cedo para uma nova tentativa. Mais uma vez, nosso personagem estava ausente. Esperamos por um longo tempo. Andamos pelo quarteirão, na esperança de vê-lo lendo suas profecias a algum pedestre. Sem sucesso, por volta das onze da manhã, fomos até a Livraria Cultura, maior atração do Conjunto Nacional. Analisando a estante de livros sobre comunicação, divagávamos sobre ideologias e o futuro da imprensa. Achamos perdido em meio a uma infinidade de livros, um pequeno ensaio sobre Luiz Carlos Prestes, escrito por sua filha Anita Leocádia. Leituras interessantes foram montando nossa “cesta de compras”. No andar superior da livraria, paramos na sessão de esportes. Como poderíamos imaginar que existia um livro intitulado “Como escolher os melhores peixes para o seu aquário”. As surpresas não paravam de aparecer. Em maio a mais uma discussão entre direita e esquerda, começamos a falar sobre o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Divagando sobre sua importância, somos então abordados por um senhor, que nos pergunta se somos alunos de história. Respondendo que não, ele revela que foi aluno de Sérgio Buarque de Holanda e nos conta sobre a importância histórica da obra de seu professor para o Brasil. Voltando-se novamente para a prateleira de livros de Sociologia, o homem começa a folhear um espesso livro. Concluímos que em São Paulo podemos encontrar grandes personagens aonde quer que possamos estar.


Sem notícias do intrigante Hare Krishina, seguimos para o bairro da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, onde mais uma figura singular da cidade trabalha. Chegando por volta das 13 horas, nos deparamos com seu espaço de trabalho (o topo da escadaria do metrô), vazio. Estávamos definitivamente sendo abandonados por nossas personagens.

O Hare Krishina realmente sumiu. Por mais dois dias voltamos ao local e nada desse personagem, não sabemos o seu paradeiro, pois por toda a Avenida Paulista não há um sinal de suas meditações. Porém, a vendedora de chocolate não demorou em voltar para o seu lugar. Depois de dois dias pudemos conversar com a camelô mais famosa da estação, e logo descobrimos o motivo de sua repentina sumida: a fiscalização mais intensa da guarda contratada pelo metrô paulista.

Vida de vendedor ambulante

Todos os dias milhares de pessoas passam apressadas pelas estações de metrô na cidade de São Paulo. Entre essas pessoas estão muitos que nem percebem o contingente de vendedores ambulantes, que fazem sua vida por meio de pequenas vendas, seja desde um churrasco até milho cozido.

Eles disputam espaço vendendo os seus produtos em pequenas barracas improvisadas, porém de fácil manejo para fugir dos guardas que fazem a segurança do metrô. Cada um possui o seu canto que é delimitado de forma invisível. Entre alguns vendedores ambulantes do metrô Vila Mariana há uma que se destaca por seu famoso bordão marqueteiro: - “Leve o chocolate”!


Gonçala Ferreira da Silva, maranhense, natural de uma pequena cidade chamada de Pio XII, veio para São Paulo há 16 anos. Quanto à idade ela diz que tem 4.3, ou seja, um eufemismo para falar sobre os anos de vida, mas Gonçala diz não se importar em revelar quantos aniversários já fez na vida. Gonçala, portanto, é mais uma migrante entre milhares que buscam na capital paulista uma vida melhor. Mas, segundo dados recentes, esse fluxo migratório diminui a cada ano, pois hoje a atração para os trabalhadores brasileiros são as cidades de médio porte, que recebem moradores de pequenos municípios e até das metrópoles.

Gonçala está todos os dias, faça chuva ou faça sol. Quando o frio aperta, não deixa de usar a sua toca tipicamente russa. Costuma vender sozinha, mas às vezes está conversando com uma de suas colegas camelôs. Normalmente de braços cruzados olha para o horizonte, como se estivesse desatenta. Mas não, sempre muito esperta, atende rapidamente os seus clientes.

Diante dos perigos da rua, ela diz que nunca foi assaltada, mas já presenciou muitos assaltos na porta do metrô. Muitas vezes ela é abordada por pessoas pedindo dinheiro ou simplesmente com a história que “perderam” suas passagens e que precisam voltar para suas casas. Gonçala, experiente com as ruas, não atende esses pedidos.

Mãe solteira e com poucos parentes e amigos na Grande São Paulo, Gonçala trabalhou pouco tempo com carteira assinada, efetuando serviços como emprega doméstica. Depois, já na Vila Mariana, passou a trabalhar nas ruas vendendo os cigarros paraguaios, que são facilmente adquiridos nos atacados no centro da cidade. Nesse mercado, passou somente dois anos e então resolveu vender chocolates.

Gonçala tem um filho de 13 anos. Esse pré-adolescente ajuda sua mãe desde os quatro anos. Estudante da rede pública, não fica todo o dia com a mãe, somente quando possível. Os dois moram em Heliópolis, a maior favela da capital paulista, que aos poucos recebe uma ampla estruturação urbanística. Entre o trabalho e a sua casa, ela gasta um pouco mais de trinta minutos. Gonçala trabalha todos os dias das 17h até meia-noite. Porém, nos últimos dias tem saído mais cedo, por volta das 22h30, devido à intensa fiscalização no final da noite.

Esta forçada saída de duas horas mais cedo tem preocupado Gonçala. Um horário muito bom de vendas, que é a vinda dos estudantes de suas universidades, tem sido abortado pela fiscalização. Para complementar a renda, Gonçala trabalha ainda como vendedora dos produtos Natura e Avon, além do trabalho de manicure aos finais de semana.

Gonçala, ainda conversando sobre a vida de camelô, lembra que o tipo de venda mais arriscada nas ruas de São Paulo são CD`s e DVD`s piratas, até mais do que cigarros e os seus chocolates. A preocupação com os fiscais é constante. No início da conversa ela expressou até mesmo uma desconfiança e logo perguntou se não éramos uma espécie diferenciada de fiscais, ou mais conhecidos popularmente como “Rapas”. A preocupação não é à toa, pois a “Rapa” já tomou suas mercadorias por três vezes, ou seja, prejuízo total.

Marketing popular

Nesses últimos dez anos, a ambulante está praticamente todos os dias na porta da estação gritando o famoso “Leve o chocolate”. Gonçala, observando os camelôs da Rua 25 de março percebeu a disputa interessante entre cada um, apresentando por meio dos gritos os seus produtos. Resolveu imitá-los. Gonçala não lembra o momento exato que começou a usar o seu bordão, mas comemora o fato e diz que suas vendas aumentam, pois a sua frase desperta os passageiros desatentos, que logo percebem o seu chocolate.

A voz de Gonçala é inconfundível, assim como sua frase. Mas a sua estratégia de marketing não é uma unanimidade. Gonçala diz que se diverte, mas vê muitos imitando sua voz, principalmente grupos de garotos e garotas que saem das várias escolas presente na região. Além da imitação, ela relata que alguns acham simplesmente engraçado a sua fala e outros até se irritam. Gonçala diz que não se incomoda com as imitações em tom jocoso.

Ela revela que um jovem universitário já gravou sua voz com um MP3 e uma câmera filmadora. Esse jovem disse que ia colocar o material na internet. Após essa interessante descoberta, vimos que não somos os únicos despertados pelo “leve o chocolate”.

Ao final da conversa, que fluiu com mais facilidade do que o esperado, Gonçala desejou sorte e disse após a conclusão do trabalho, quer receber o endereço da web onde o texto será publicado. Ela quer acessar com o seu filho. Prometemos informá-la.

Observando esses personagens paulistanos como o Hare Krishina, o aluno do Sérgio Buarque de Holanda e a Gonçala Ferreira, vemos como todos procuram vender os seus produtos e as suas abordagens criativas. Um vende a sua fé, o outro a sua intelectualidade e a outra alguns chocolates. São Paulo é um lugar para vendedores.

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