quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um jornalismo cruel

Por Dalton L. C. de Almeida



“Uma história Severina”... Esse é o título de um documentário curta-metragem dirigido por Eliane Brum, jornalista famosa e amplamente premiada pela academia. Assisti ao vídeo essa terça-feira em aula na faculdade e após a exibição formou-se uma interessante discussão, fomentada por nosso professor. Que devido ao tempo escasso e a hora adiantada, ficou inacabada e superficial.

Meu posicionamento (que gerou certa “grita”) foi:


O curta é manipulativo, baixo e uma vergonha.

Naturalmente que assim - da boca para fora - minha posição aparentemente carece de uma reflexão. A seguir, através de reflexões e contextualizações, pretendo mostrar o porquê de minha opinião.

Primeiramente é importante que eu defina alguns aspectos que balizam minha personalidade e opinião. Isso colabora para a compreensão do meu posicionamento e ao mesmo tempo esclarece que parto de princípios claros.

Sou católico apostólico romano. Como tal, e como o papa, defendo a dignidade e a inviolabilidade da vida humana, mesmo que isso possa causar grandes dores emocionais a terceiros.


Dentro dessa lógica (de inviolabilidade da vida) sou obviamente contra estudo com célula- tronco embrionárias - pois matam embriões- e contra aborto, sendo dentro da gama de opções de aborto, especialmente contra o aborto de criancinhas anencéfalas.


Acredito que exista “o certo” e “o errado” no mundo. Sendo as miríades de opções adaptativas de certo e errado a cada caso ou interesse, algo do campo e lógica de reflexão relativista.

Metodologia de pensamento da qual eu naturalmente discordo.


Acredito que o certo e o errado devem ser baseados na moral judaico-cristã, direito a vida, dignidade e isonomia.


Defendo o Estado de direito e suas leis.

Defendo a laicidade do governo. Lembrando que a separação do Estado e da Igreja, não retira da última o direito a possuir um posicionamento e de o defender frente a sociedade e o Estado.
Acredito na”força do precedente”. Por isso não acredito na validade de exceções judiciais ou legais como forma/metodologia política séria e estruturalmente responsável para um Estado.


Acredito que a justiça deva ser aplicada de forma imparcial e seus preceitos não devem se submeter às pressões infligidas pela dor em escala individual ou social.


Não acredito em “justiça histórica”. Ou seja, através de injustiças no presente, “fazer justiça” a injustiças passadas. Por isso sou contra o aborto de crianças geradas como resultado a estupros. É fazer “justiça” a mãe, através de um assassinato e injustiça ao filho, devido a um histórico do qual ele não é responsável.


Acredito que a dor (como sentimento) e o sofrimento fazem parte da vida e sua existência reforça nossa humanidade. E que a exclusão ou a busca pela total exclusão de qualquer uma das duas invariavelmente leva a uma perda do sentido de humanidade. Em tempos de venda da felicidade como o objetivo máximo e “obrigatório” de vida, defender a existência da dor e seu valor vai contra a maré do que chamo de “discurso do politicamente correto”.

Vamos ao documentário:

O documentário mostra o sofrimento de uma gestante de condição financeira absolutamente pobre, em um teatro de condições que envolve o fato de ela estar grávida de uma criança anecéfala, ter o interesse declarado em fazer um aborto e de ter sido exposta a uma situação de impedimento/postergação do aborto (anteriormente autorizado) devido a um processo de rediscussão da legislação vigente pelo Superior Tribunal Federal e que “congelou” autorizações a partir de determinada data (impedindo que a gestante, anteriormente internada em um hospital, realizasse o procedimento de aborto).
Em “miúdos”. A gestante pobre e sem condições, teve um aborto já marcado, cancelado devido ao início de discussões referentes à manutenção ou não da legalidade do aborto em caso de anencefalia.

Reflexão

Ponto de partida:

Meu professor defendeu/declarou (em sala) que o documentário pretendia mostrar como decisões e eventos em altas esferas da dinâmica do país e o tempo gasto nestas disputas ideológicas, pode ser danoso e injusto para com os mais pobres e desassistidos cidadãos. Sendo o “cerne”, “justificativa”, “objetivo” do documentário, tratar desse assunto através da história de sofrimento de uma gestante, que quer abortar um bebê anencéfalo , mas encontra-se impedida pela morosidade e os efeitos colaterais dos processos de decisão da manutenção ou não da lei de aborto de anencéfalos pelo STF. (Neste caso, entra como efeito colateral, a suspensão do direito a aborto requerido pela gestante, pois a lei estava sendo rediscutida).

Meu posicionamento:

Discordo de que o objetivo do documentário seja realmente discutir sobre os efeitos colaterais da morosidade da dinâmica de poder (no caso do judiciário) e seus impactos sobre os mais fracos e desassistidos. Na verdade, acredito que essa seja a desculpa/pano de fundo para defender, por meio de instigação emocional (leia-se manipulação) nas entrelinhas, o aborto de crianças anencéfalas como forma válida de redução da dor de mulheres gestantes e que sofrem com a perspectiva de ter uma criança condenada a morte. (E indiretamente reforçar o sentido de busca da “felicidade” e supressão da dor, seja por quais meios for....e que de concessão em concessão levará a humanidade a bancarrota moral)


Porque digo isso? Bom .... o documentário é tangencial quanto a justificativa de sua existência. Os personagens até comentam (vária vezes) a respeito de como pretendiam abortar, como a mudança de legislação “abortou” esse intento, como se sentiram frustrados com essa situação e como ainda lutam para conseguir a autorização. Fica claro ao ver o documentário, que a mulher não chora ou sofre porque o processo de aborto está congelado. Isso é apenas um incômodo/atraso técnico aos objetivos dela e do marido. Ela sofre sim, e não tiro sua razão, com a perspectiva de carregar diariamente um filho com pouquíssimas chances de sobrevivência e que está invariavelmente condenado a morte. Chora porque uma mãe quer o melhor a suas crias e porque é triste, torturante e um grande peso carregar uma vida que não há de florescer. (entendo a dor, mas não considero ela justificativa para o assassinato da criança)


Reflexão secundária...

Nesse ponto já se mostra um triste paradoxo em nossa realidade. Em geral, as pessoas fazem todo o possível para postergar a dor de uma perda, tanto que expõem familiares e amigos a beira da morte a expedientes de manutenção da vida extremos, que trazem dor e sofrimento aos enfermos. Ainda sim isso é feito na tentativa de manter nesse mundo aqueles que amam. Nossa sociedade, que mantém pessoas vivas a todo o custo, vive um momento onde se prega que a melhor forma de se resolver a dor da perda de uma criança anencéfala é adiantar sua morte e se despedir o quanto antes da mesma, negando a ela o tempo de vida que lhe resta, em favor da dita “sanidade emocional e espiritual” dos pais. Irônico... e cruelmente sem sentido.


Entristeço-me ao ver a dor que passou a gestante. Mas não compartilho com ela que a solução seja matar a criança. Pois para mim, matar essa criança condenada à morte seria o mesmo que abortar uma criança qualquer que já se sabe, nascerá com alguma deficiência debilitante e que lhe cerceará anos de vida. Sou contra a lógica do sacrifício pelo “bem do sacrificado”. Principalmente quando este não foi inquirido a respeito. E porque na maioria das vezes os maiores interessados e beneficiários são terceiros. Ex: pais que querem poupar trabalho, prejuízo e dor, Estado que reduz custos, Clínicas que lucrarão com o processo de aborto etc.
Definir quem merece morrer antes de nascer é o precedente que leva a médio e longo prazo a humanidade a primores como a eugenia.


Continuando....

A jornalista na edição do documentário e na escolha das imagens, capitaliza assim a dor de uma mãe com a perspectiva da perda de um filho, para construir uma “pseudo-situação” de sofrimento por não poder abortar. A farsa na justificativa do porque se usar imagens de sofrimento, como as dos momentos anteriores ao aborto - já então autorizado pela justiça - em que ela (gestante) aparece se apoiando a uma parede com dores excruciantes, enquanto outra pessoa passa com um bebe vivo no colo, cai no momento em que mãe grita e sofre ao ver a criança morta na sala em que o aborto é realizado. Se queria tanto o aborto e sofria tanto com a não feitura do mesmo. Porque então o escândalo ao ver o filho morto? Era esse o objetivo do processo, adiantar o “destino”.


Resposta: Simples! Seu sofrimento era pela morte inevitável do filho, adiantada por ela de forma paradoxal, e não por não fazer o aborto ou porque o STF demorava em tomar uma decisão. É ali que a justificativa, capenga, do documentário para apresentar com requintes de intimidade o sofrimento da gestante simplesmente se desfaz.

O documentário também apresenta em outro momento cenas/recortes de juízes do STF em processo de discussão a respeito da liberação do aborto de crianças anencéfalas. Nesse quesito, ele (o documentário)cria uma atmosfera de isenção, ao trazer ambos lados em disputa. Mas é apenas uma “criação”. O recorte final traz a fala de um dos envolvidos no julgamento do STF, em um sentimental posicionamento, censurando o STF por dar a entender que “não tinha nada haver com o problema das mães das crianças anencéfalas”. Frase de efeito (e que escrevi entre aspas em uma redução livre do conceito central da original) que reforça o posicionamento do documentário e cria um desconforto ao espectador, gerando a perigosa reflexão “tanta discussão e uma mãe sofrendo, eles não se preocupam com isso?”. Perigosa reflexão pois o motivo da discussão é mais profundo que apenas o sofrimento de uma mulher. A discussão trata de questões, que vão do precedente jurídico à noção de direito a vida. Assuntos sequer imaginados pelos pobres e ignorantes(nesse assunto) personagens que brigam pelo direito de matar seu filho anencéfalo e que tem “representados” em si mesmos no documentário, parcela substância da população.

A seqüência de recortes de ministros do STF com o desfecho-final-dramático (obviamente escolhido a dedo), reduz a profundidade e seriedade de uma polêmica discussão. O documentário que diz-se interessado em contar um história, utiliza o sofrimento de uma mãe, como elemento de reforço para deslegitimar o democrático processo de discussão sobre a legislação no STF. Em troca do que? Claro! Da manutenção do paradigma anterior e da “inquestionabilidade” do mesmo. Pergunto. A quem isso interessa?

Através da dor e sofrimento de uma mãe, o documentário faz proselitismo disfarçado de jornalismo, na defesa do aborto como solução mais aceitável para a dor de gestantes com filhos anencéfalos. Sugere nas entrelinhas um padrão de realidade de vida, como se a anencefalia fosse um problema social exclusivo dos muito pobres. (algo que poderia ter sido evitado, com um contra-ponto de personagens ou apenas com informações extras, dando um panorama da incidência da doença frente a população e suas classes – o que faria sentido, já que o documentário se dedicou a apresentar informações extras além da história do casal).


Quanto à defesa de meu professor de que a gestante sofre uma injustiça.

Novamente discordo. ...Que injustiça? Não poder abortar? Isso é definido pela legislação e se a mesma está em discussão e portanto congelada, não existe injustiça. Aliás, ela ter um bebê anencéfalo é parte do “jogo” estatístico da vida. Alguns nascem com habilidades e aptidões que garantirão sucesso, outros com defeitos que podem abreviar a vida. Será que o fato de uns trazerem alegrias e outros tristeza, faz um ou outro menos digno de direito a vida? E a defesa dessa dignidade tornasse assim uma injustiça a mãe?


É necessário um peso e uma medida. E ele não pode ser definido de supetão sob a pressão de quem defende o “direito” de alegrias de uns em detrimento do da vida de outros.

Outras....


Há ainda outras temáticas tratadas no documentário. Que dão apoios secundários a caricaturização do casal como “vítimas”.


Como a dificuldade de compreensão por parte dos personagens da dinâmica legal ao buscar uma nova autorização para aborto. Algo natural visto a óbvia falta de estudos e estrutura dos dois, e que naturalmente é tratado como “uma barreira da sociedade ao pobre”, no melhor do estilo politicamente correto esquerdista de se ler o mundo.


Ou as dificuldades de um sistema de saúde despreparado para atender a demanda de mães autorizadas a matar seus filhos. O que deve configurar na mentalidade esquerdista um ataque a cidadania. Afinal.... Como que pode um hospital não estar 100% preparado para matar bebês??!!


Há inclusive, uma interessante hipocrisia envolvendo uma discussão de uma representante de ONG (ONG Curumim.... um belo nome para quem defende abortos) e um médico. Em que o último explica que muitos médicos se negam a fazer o procedimento de aborto e que a gestante, mesmo autorizada, terá que esperar uma janela de oportunidade. A representante da ONG começa com um “respeitamos o direito dos médicos” (pro forma dedicada ao documentário) e termina com um “mas temos uma autorização e a instituição é obrigada a fazer o procedimento”.


Interessante... e se todos os médicos se negassem? Ela continuaria respeitando a decisão deles, mas ao mesmo tempo forçaria “a instituição” (que é feita por médicos), nem que fosse com a polícia, para alguém cometer o assassinato? Irônico. E um exemplo de sinal dos tempos. Uma ONG voltada à vida, brigando ferrenhamente pelo direito de se matar seres vivos e indefesos.


Em resumo:


O documentário é em minha opinião manipulativo porque capitaliza a natural empatia do público com o sofrimento da gestante (sob a desculpa de uma justificativa de foco falsa), com o objetivo de convencê-lo de que o aborto de crianças anencéfalas é a solução para esse sofrimento.Quando não é. Abortar ou não, não mudará o fato de que essas mães que perderão os filhos hão de sofrer.
O documentário é baixo, porque utilizasse da dor e da ignorância de seus personagens para fazer proselitismo mascarado.


O documentário é uma vergonha. Pois embora em jornalismo a isenção total e completa seja algo utópico. A manipulação e o uso de pessoas para fins ideológicos é anti-ético.

O documentário é um ótimo exemplo de jornalismo com intenções cruéis, mascarado de sensível e engajado, ao se dizer focado em “apenas em contar uma história” e “criticar os efeitos colaterais de uma estrutura social”.


Mais um produto ideológico, que a meu ver, cheira ao ranço da justificadamente temida eugenia.

4 comentários:

Yonara Santana disse...

"Posso não concordar com uma só palavra, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Voltaire

Dalton L.C. de Almeida disse...

Sou defensor do mesmo preceito! :D

Abraços,

Dalton

Unknown disse...

Acredito que apenas as mães - e ninguém além delas – seja detentor desse direito. Acredito também que aqueles senhores do STF deveriam apenas escolher a roupa que usariam na segunda ou terça-feira, nada além disso. Por fim, acredito que o documentário é um espetáculo de bom jornalismo, desde sua pauta até sua edição.

Concordo em diversos pontos da sua análise, mas não gostaria, de maneira alguma, que essa decisão (aborto) estivesse em suas mãos. Pois, aí sim, teríamos uma eugenia do mal, uma eugenia “Daldística”. (rs)

Dalton L.C. de Almeida disse...

Caro Fernando,

Eugenia é o melhoramento do homem por meios artificiais (o que ja invalida seu raciocionio, visto que não defendi o dedo do homem na dinâmica da natureza), causando uma série de problemas éticos e práticos, com impacto na dinêmica social, noção da liberdade entre outros.

A não interferência.... que é o que prego ao ser contra um atitude que tende a facilitar a escalada da eugenia, é a defesa da lógica natural da reprodução e concepção. E na pior das hipótes, tendo, tendo em vista o nosso contexto tecnológio à disgenia, que seria a facilitação do repasse de doenças genéticas para as próximas gerações devido ao maior tempo de sobrevivência de deficientes que assim se reproduzem. Há muita discussão a respeito, mas não mexer nio "esquema natural", com certeza não tem nada de eugênico.

Leia mais no link:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia

Eu defendo a dignidade humana e o direito a vida. Se eu não posso meter uma bala entre os olhos do meu vizinho porque ele atrapalha meu sono todas as noites, não faz sentido que a mulher possa executar com um aborto uma criança inocente e temporariamente acondicionada dentro dela, só porque não quer ou a incomoda.

Sua reflexão abre um precendente... o de que algumas pessoas tem mais direito a definir quem merece viver do que outras...e isso... seja lá qual for o motivo.

Isso é o primeiro passo para o "Horror" e a Espanha, entre outros países, deu recentemente um grande passo nessa direção. Engraçado como reforçam um problema de segurança nacional (falta de população espanhola) com o fomento a sua redução e envelhecimento, além é claro da devasidão moral e promiscuidade.